sexta-feira, 24 de junho de 2016

Memórias de Andorras

Eles haviam chegado a cidade naquela manhã. Andorras, Chronos e Pandur, se destacavam cada um a sua maneira.

Pandur, sempre imponente, o cabelo loiro, comprido j
á na altura dos ombros, balançava com a brisa fresca do mar. A barba por fazer de alguns dias de viagem entre a torre e Waterdeep parecia emoldurar seu belo rosto. Os olhos azuis competiam com a cor do céu naquela manhã de sol. O corpo forte totalmente coberto pela armadura. Desfilava pelas ruas em cima do cavalo branco, como se nada pudesse atingi-lo.

Andorras, com seu corpo mais esguio, dispensava a armadura e andava com o peito torneado
à mostra. A calça de viagem presa com um cinto que carregava apenas uma bainha e sua espada. Na ponta da espada, a pedra com o símbolo do Gorgon...
O cabelo comprido emoldurava seu belo rosto de linhas finas, marcado pela cicatriz que eclipsava o seu sorriso largo e cativante. Caminhava brincando com as garotas na rua, assobiava mesmo sem receber tantos suspiros de volta. Estava com uma alegria contagiante, para variar,era s
ó não tentar mexer em suas coisas...
Alguns passos atrás dos dois, cavalgando um enorme corcel negro, vinha ele, uma figura encapuzada e com uma máscara. O movimento do cavalo por vezes denunciava a armadura reluzente de cristal por baixo do pano, mas a máscara mantinha o mistério daquele ser tão destoante de seus companheiros. No pequeno broquel em seu braço o símbolo do deus da morte denunciava possíveis intenções.
Separaram-se durante todo o dia, cada um se ocupando com sua própria agenda, combinada desde o inicio da viagem. Mantimentos para eles e para os animais, material para construção que não podiam encontrar por eles mesmos nos arredores da torre, alguns animais de criação que poderiam aguentar até o inverno...

O paladino iria até seu templo, efetuar suas orações, prestar suas homenagens, oferecer algum serviço e algum tipo de retribuição.

Andorras estava mais preocupado em passar seu tempo com garotas. Sempre voltava com alguma informa
ção nova sobre a cidade, mas não era exatamente esse seu objetivo e todos sabiam.
Chronos evitava contato com os outros enquanto fosse possível. Ou melhor, as pessoas evitavam contato com ele. Mesmo com a máscara, sua presença parecia causar uma irritação geral em todos da cidade.
No final do dia se encontravam na taverna do Cão Caolho, como sempre. Avaliavam se já haviam conseguido tudo que tinham ido buscar e se preparavam para voltar a torre no dia seguinte.
Na taverna um bardo tocava seu violão e cantava uma canção sobre amores vividos.
Um rapaz esbarra sem querer em Andorras, que se levanta pronto para lutar, espada já em punho. Pandur se levanta, colocando a mão sobre a do amigo, pedindo desculpas ao transeunte e tentando acalmar o guerreiro dizendo que ninguém estava tentando levar sua espada.
Sentam-se novamente.

- Voc
ês não entendem, eu sei que as pessoas olham pra essa espada e querem leva-la. São tão atraídos por ela quanto eu sou.
- Até você pegar essa espada, Andorras, você jurava que as pessoas olhavam era pra você por causa da sua carinha de anjo! brinca Chronos num raro momento de descontração, provocando fazendo-o lembrar da cicatriz que tanto lhe custara. O Cão Caolho é o único lugar onde ele se permite tirar a máscara e ser um pouco mais ele mesmo.
No rosto jovem pode-se ver a marca do sol negro e da caveira. E a verdade
é que a impressão que dá se olhar por tempo suficiente é que o negro do sol é apenas o abismo, e a caveira, mais que uma pintura, os próprios ossos de seu portador. Quando ele foca os olhos parece que ele pode ver sua alma... Ou é assim que um dia Zé descreveu pra ele, com sua calma tão única, ao recomendar que ele usasse a máscara ao ir à cidade.
- Eles ainda olham pra mim, amigo, tenha certeza! Só preciso ter o cuidado de que, numa distração, aqueles que preferem olhar para baixo não se animem achando que alguém com minha aparência não seria capaz de cuidar da própria espada!

S
ão interrompidos por um pajem do Templo de Tempus, que afobado ignora os dois conversando e se dirige a Pandur que ria de tudo encostado na cadeira.
- Senhor, o senhor precisa vir comigo agora!
- Calma, menino, o que foi? Ele pergunta, voltando a postura imponente de paladino.
O garoto olha em volta, v
ê a aparência de Chronos e faz uma careta de desaprovação e medo. E diz:
- Aqui não, senhor. Ele pode nos ouvir aqui. Vamos ao templo.
- Vamos amigos, parece que teremos alguma distra
ção para essa noite enfim!
Os outros dois assumem cada um, um dos lados do paladino. Andorras diz que vai encontrá-los no templo em alguns minutos, mais preparado. Chronos coloca de volta a máscara, mas o garoto diz:
- Ele n
ão.
- Meus amigos vão comigo onde eu for. Ele diz pondo fim a discussão antes dela começar -  Apenas me leve ao templo e explique. Por favor.

Quando alcançam o Templo de Tempus eles podem ouvir um lamento ecoando com o vento. O som se assemelha a uma mulher chorando. O som vem dos bueiros que levam ao esgoto.
No templo o Clérigo agradece a rápida resposta. Poucos minutos depois Andorras chega, agora com sua armadura negra, e eles estão prontos.
O cl
érigo explica que nas ultimas luas eles tem ouvido esse lamento vindo do esgoto. Ele mesmo tentou averiguar a origem, mas sem sucesso. Apesar de ter o poder para expulsar qualquer mal que possa estar por trás disso, ele agradeceria se o nobre paladino se encarregasse, para que ele mesmo não precisasse se ausentar do Templo novamente.
Andorras e Chronos percebem claramente a animação de Pandur com a ideia. Havia meses eles estavam nessa tarefa de cavar um buraco para soltar um dragão e reconstruir a Torre do Meio do Caminho. Faltava ação. E agora uma grande oportunidade se apresentava.
Eles aceitam a tarefa, tentando fingir não estarem todos muito animados com a possibilidade de encontrar alguma coisa que viesse a ser um desafio. A adrenalina corria em suas veias. Protegendo o flanco um do outro, eles adentram os esgotos da cidade atrás da mulher, já sonhando com as recompensas.
A tarefa dura poucas horas. Eles caminham em meio aos ratos e a sujeira, seguindo um rastro de música. Num buraco no que deve ser próximo a torre principal do Templo de Tempus eles encontram a assombração.
Andorras espera pela ação do Paladino, claramente pronto para o ataque.

E pela primeira vez Chronos tem a sensação real do que aquela marca em seu rosto realmente significava... Ao se deparar com o fantasma... Ele sente sua presença poucos segundos antes dos outros. Ele sente o cheiro de longe e é ele que os leva até o buraco embaixo da torre, quase como um cão de caça. Ao ter a aparição em vista, ela parece emanar uma luz, mas essa impressão dura pouco mais que algumas piscadas. No lamento do fantasma ele sente uma leve pontada no peito, e tem a certeza que o lugar dela não é ali, e que esta perdida. Ele quase sente pena dela. Por um segundo ele acredita que ela olhou diretamente pra ele, e essa dor passou.

N
ão houve tempo para muito mais.
Pandur clama pelo poder e ben
ção de Tempus, pedindo que ele expurgue aquele ser desse mundo onde ele não mais pertence. O símbolo sagrado entalhado no peito da armadura brilha forte, ofuscando tudo em sua volta enquanto queima qualquer rastro daquele ser murmurante.
E Chronos sente aquela alma queimar. Não apenas vê. Ele a sente queimar. Seu rosto queima junto enquanto o clamor àquele Deus é proferido. Ele sente dor, e raiva, e sente o ímpeto de atacar ou fugir. Mas quando a luz chega ao seu auge e o mal que prendia aquele ser ali se desfaz, ele sente paz. E só então, ele vê claramente, que o espírito ali aprisionado se foi. Não na dor. Não na raiva. Mas na luz e na paz quando o mal foi vencido.

Ele olha ara os amigos e percebe rapidamente que nenhum deles percebeu isso. Andorras rapidamente j
á procurava por algum objeto que pudesse ter aprisionado o espírito e por tesouros remanescentes de outras batalhas. Pandur agradecia a Tempus, alheio a todo o resto.
Chronos percebia ali que ele n
ão havia apenas sido sacaneado por um Deus impulsivo. Era muito mais que isso. E ele não sabia se ele queria esse tipo de responsabilidade.
Uma parte dele havia sido tocada, uma parte dele havia sido expulsa e retornado durante a magia divina. Estarrecido com o poder que ele pela primeira vez havia presenciado e sentido com toda essa força, de forma tão pessoal.

Muito mais havia mudado, no entanto. E eles estavam apenas come
çando a entender esse novo caminho que se apresentava à todos...

Ele pisca mais uma vez ao ver aquela representação de Andorrras na sua frente.
Obrigado mais uma vez, Chronos, meu amigo.

Ele não estava esperando por isso...